Quarta-feira, 16 de junho de 2010
Ouvir matéria
Para a jornalista, que esteve em Curitiba na terça-feira, a democracia no país está amadurecendo
A democracia brasileira está amadurecendo, apesar de tentativas de infantilizar o eleitorado e de alguns fatos que ainda surpreendem os olhares mais experientes no campo da política. Essa é uma das conclusões da jornalista e colunista especializada em política Dora Kramer, que esteve em Curitiba na terça-feira (15) para um palestra sobre ética na política, proferida no jantar em comemoração aos 93 anos do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). Como uma das vozes mais influentes do país no ramo, Dora afirma que o ficha limpa é a prova desse amadurecimento, pois ele atesta o poder do cidadão. “É muito importante para mostrar para a sociedade que os governantes podem muito, mas não podem tudo”, alerta a jornalista. No bate-papo por telefone com a Gazeta do Povo, também defende a colocação voto obrigatório em debate e o papel crítico da imprensa em relação ao poder público.
Gazeta do Povo - A democracia brasileira se mostra bastante amadurecida no sentido formal. Temos voto em urnas eletrônicas, apuração rápida, uma bom processo de eleição, etc. Por outro lado, a maioria dos cidadãos ainda não acompanha os representantes que elege, não fiscaliza suas ações ou contas, mesmo com diversos escândalos já revelados. Há aí um certo descompasso. Na sua opinião, há perspectivas de amadurecimento também desse outro lado?
Dora Kramer - Sempre. A medida que o tempo passa a expectativa é de amadurecimento, mas acho que hoje ele não é celebrado. O que interessa mais aos políticos e aos governantes é a infantilização do eleitorado. Você começa a tratar as coisas mais na simplificação do debate. Como nesse cenário que está se desenhando no horizonte, na esfera federal: não há um embate de candidato para candidato. Para falarmos dos dois principais, há um candidato da oposição e, de outro lado, o presidente da república tentando passar a ideia de que a candidata que ele apresenta na verdade é ele. Isso é uma mistificação. Ora, ao tratar o eleitorado dessa maneira você não está apostando no amadurecimento dele, mas ao contrário, na infantilização. Mesmo assim, acho que existe essa expectativa e me baseio na evolução que houve desde a redemocratização para cá para afirmar isso. Veja como exemplo a aprovação do Projeto Ficha Limpa.
Gazeta do Povo - Isso demonstra uma certa maturidade do eleitorado, então?
Dora Kramer - Sem dúvida. Várias coisas que antigamente eram aceitáveis, hoje não são. Por exemplo, os pianistas, que eram deputados federais que foram flagrados na década de 80 votando no lugar de outros. Eles foram fotografados, mas nada aconteceu. Não houve punição final e sequer foi aberto processo. Hoje isso seria inadmissível, o que mostra que a sociedade já amadureceu a um ponto de não aceitar determinadas práticas.
Gazeta do Povo - Você publicou junto com Pedro Collor o livro "Passando a limpo - a trajetória de um farsante", que relata os bastidores do poder quando Fernando Collor governava. Além disso, recentemente lançou um livro de crônicas políticas da era Lula, "O poder do avesso", no qual fala de muitos dos escândalos do seu governo. Collor anos depois voltou para a política e foi eleito. Lula tem índices muito grandes de aprovação, independente dos escândalos pelos quais seu governo passou. Mesmo assim, você considera que houve amadurecimento? Dá para notar isso nesses exemplos, nesse período de tempo?
Dora Kramer - Você citou exatamente um exemplo de retrocesso, que é o que eu chamo de infantilização. As pessoas acharam que era correto ir para a rua e fazer um movimento para que aquele presidente não continuasse. No entanto, acham completamente aceitável que essa mesma pessoa faça parte da vida política atual. Quer dizer, mesmo que ele já tenha pago a pena, ficando inelegível por um tempo, me parece completamente incongruente o fato das pessoas tratarem como aceitável o fato do Fenando Collor transitar na cena política como uma figura de importância. Que ele seja eleito pelo estado de Alagoas, é a regra do jogo, mas que ele volte como um dos protagonistas do cenário, é surpreendente. Não condiz com o amadurecimento que eu acho que a gente vinha tendo.
Gazeta do Povo - Seria algo meio singular, não?
Dora Kramer - É singular porque tudo no cenário atual está, de certa forma, sui generis. O que você tem quando um partido como o PT, que se formou a partir da bandeira da ética política, abandona e renega essa causa a partir do momento que assume o poder? Você tem um afundamento, uma espécie de volta ao mal caminho.
Gazeta do Povo - Você falou no Projeto Ficha Limpa como um bom caminho. Algumas polêmicas ficaram em relação ao projeto, que recentemente foi sancionado pelo presidente Lula e virou lei. Ainda assim, é um avanço válido? Ele representa um pouco da volta da mobilização popular, dessa vez com a facilidade da internet
Dora Kramer - Acho que sim, porque a mudança de texto foi, na verdade, uma tentativa de manobra feitas no parlamento. O que eu cito como um bom exemplo foi o ato da sociedade de pressionar o Congresso a tomar uma atitude que não queria, mas que mesmo assim a sociedade entendia como correta.
Gazeta do Povo - Então, o cidadão tem poder.
Dora Kramer - É isso que as pessoas parecem que não estão compreendendo. E o exemplo do Ficha Limpa é muito importante para mostrar para a sociedade que os governantes podem muito, mas não podem tudo. Quem tem o poder é a sociedade, em última análise. O Congresso não queria votar de jeito nenhum o ficha limpa. Era um projeto que estava lá, rolando. Mas porque a Câmara queria fazer um agrado em ano eleitoral, foi colocado em pauta. E, de repente, você tem o projeto aprovado por unanimidade. Agora, que vai haver contestação na Justiça, vai. Mas isso é outro problema.
Gazeta do Povo – E falando em participação, a gente tem aí a questão do voto, o mais antigo instrumento para isso. Como é que você vê essa importância do voto e, principalmente, de um voto bem informado? Em que aspectos ele é relevante?
Dora Kramer - Em todos os aspectos. O voto bem informado é um voto de qualidade. O voto mal informado resulta numa distorção da representação popular. Mas há outra questão aí. Ao contrário do que muita gente argumenta, de que o voto obrigatório é absolutamente necessário para a democracia, penso diferente. Acho que o fim do voto obrigatório nos daria oportunidade de exercitar o voto consciente e aperfeiçoar a democracia. As pessoas aí podem dizer: “Mas o povo brasileiro não tem educação suficiente para ter o voto facultativo”. Primeiro, eu não sei porque nós, das mais de 230 nações do mundo, fazermos parte daquele grupo de 30 que tem o voto obrigatório. Segundo, eu não sei em que momento se julgaria que o povo brasileiro está suficientemente educado para ter o voto facultativo. Portanto, eu acho que o voto bem informado é fundamental para o aperfeiçoamento da democracia e um instrumento interessante seria primeiro o debate sobre o voto obrigatório ou voto facultativo. Primeiro o debate, claro, porque vai que a sociedade não quer.
Gazeta do Povo – Com tantos escândalos, com tantas polêmicas que aparecem na cobertura diária da vida pública, o cidadão não está já um tanto entorpecido? Na sua visão, isso não poderia ser um dos fatores de desinteresse da população em geral pela política?
Dora Kramer - Acho que há, sim, um grande desestímulo, e isso aparece nas pesquisas. E é a banalização dos escândalos que faz isso, por meio da impunidade, pelo discurso indiferente e a forma pouco séria com que os políticos tratam os escândalos. Mas são os próprios alvos que esvaziam as polêmicas, causando menos indignação e cansando a população. E a sociedade não percebe que ao ficar farta disso ela só contribui para que esse tipo de gente - que acha que pode tudo e tem o poder eterno de fazer qualquer tipo de coisa com o bem público - sobreviva. Quanto mais indiferente for a sociedade, pior vão ser essas práticas e mais liberada vai estar essa gente para agir dessa maneira.
Gazeta do Povo - Em sua crônica “Uma nação de cócoras” (15/10/2009), você diz que a oposição tem um certo receio de criticar Lula e faz muitas vezes vista grossa para algumas atitudes no mínimo “polêmicas” do presidente por medo do mito que Lula se tornou. Mas o presidente reclama seguidamente de ser “perseguido” pela imprensa brasileira. A imprensa hoje, então, cumpre melhor esse papel de oposição, de vigilante da democracia, que a própria oposição política? Esse não é um dos papéis básicos da imprensa?
Dora Kramer - Não, ela não tem que fazer papel de oposição. Imprensa tem que ser sempre de oposição. Além de informar, tem que fiscalizar também. Temos que ser críticos com todos e sempre. No entanto, houve uma época, que eu achei muito ruim, em que a imprensa publicava todos os dossiês que chegavam, sem checar e sem investigar. Aí também não é possível. Mas temos que fazer nosso papel, até com campanhas, sim. Como a imprensa é o canal de comunicação da sociedade, deve ser atuante. Que história é essa de isenção? Tal como certos governantes gostam, é sinônimo de omissão.
Gazeta do Povo - E os três poderes, não deveriam se fiscalizar? Quais são os efeitos para a democracia de não se ter eles bem separados e independentes?
Dora Kramer - É totalmente prejudicial. Isso havendo, é uma distorção do conceito de república e, portanto, não é uma democracia que funcione corretamente. Mas acho que o que acontece hoje é um desequilíbrio entre eles: um Executivo superlativo, digamos assim, com um Congresso submisso, mas visando resultados em forma de vantagens, e quem faz o papel mais atuante é o Judiciário. Tanto é que várias vozes de crítica estão se levantando contra o Judiciário porque ele está causando desconforto.
Fonte: IG
Última Atualização do site: 22/11/2024 07:41:57